sábado, 27 de setembro de 2008

Cota 50
Paulino Damião, repórter fotográfico, 35 anos de carreira, todos no Jornal de Angola. Agora, no Jornal de Economia e Finanças. Meu inseparável guia pelas ruas de Luanda. Não há lugar onde não seja reconhecido e festejado. Expliquei-lhe por que digo sempre nessas situações que ele é mais conhecido do que nota de um real. Fica orgulhoso.
Em 1963, o pai caminhando pelas matas de Nambuangongo, província do Bengo, deparou-se com as tropas coloniais portuguesas. Foi fuzilado. Ele, feito prisioneiro aos 14 anos. Ainda em poder dos portugueses, teve a mãe morta por bombardeios aéreos dois anos depois. Certa vez, estando nós fotografando na Fortaleza, edificação histórica de onde se avista toda a baía de Luanda e hoje abriga um museu da luta pela independência, pedi a ele que subisse num dos velhos aviões militares ali expostos para fotografá-lo. Subiu, e sorridente disse-me que um daqueles matara boa parte de sua família.
Separado, mora em Chicala, área de ocupação sobre aterro feito junto à baia. Com ele vivem os quatro filhos (“nunca tive filhos fora”, diz) , nove netos e três sobrinhas. Entre os filhos, o artista plástico Lino Damião, convidado para participar da bienal de Cape Town, África do Sul. Pergunto quantas namoradas tem. Tímido, se enrola na conta. Damos muitas risadas.
Sua chegada é sempre muito esperada na redação. Traz “jinguba” (amendoim) torrada todos os dias.
Durante o tempo em poder do exército português, por ser ainda “miúdo”, ficava entre os militares que ele chama de artistas – músicos, pintores, redatores, fotógrafos. Ironicamente, foi no campo de guerra que descobriu sua paixão. Nunca mais parou de fotografar.
Em 65, como ainda não tinha idade para ir para um presídio regular, foi enviado a Luanda aos cuidados de um tio que logo em seguida também morreu. Só reencontrou os familiares sobreviventes em 75, com o fim da guerra pela independência.

Estudou fotografia por correspondência no Instituto Universal Brasileiro e na Escola Álvaro Torrão, de Portugal. No auge do P&B teve estúdio e laboratório no Largo da Portugália, centro de Luanda. Sem saudosismos, gosta muito da instantaneidade da foto digital. Adora mostrar o resultado no visor de sua câmera.
Em 80 foi enviado a Moscou para cobrir a olimpíada. Era o único fotógrafo negro credenciado para os jogos olímpicos, conta. Conhece quase toda a África subsaariana.
Eu desembarquei em Luanda numa manhã de segunda feira. Ao meio dia já estava na redação (ou o que viria a ser a redação do Jornal de Economia). Foi o primeiro angolano a quem fui apresentado. Estava ansioso pela minha chegada. Em seguida saímos. Foi ao seu lado que fiz minha primeira foto em Angola, no Largo do Kinaxixe, centro de Luanda. Quando a luz caiu fomos à Fanta, localidade onde se encontra um grande edifício inacabado, ainda da época dos portugueses, ocupado por moradores carentes. Um grande cortiço vertical. Lá, no bar da Marli, uma birosca bem simpática onde numa TV empoeirada passava novela brasileira, fui por ele apresentado à Cuca, cerveja nacional e popular, orgulho dos Angolanos, mas tida como bebida sem sofisticação. Suave, levemente adocicada, adorei. Só tomo outra quando não há Cuca.
O codinome “50” ganhou no começo da carreira. Cobria jogos de futebol apenas com uma lente de 50 mm, pois era a única que possuía, quando os outros fotógrafos, já nesta época, usavam longas teleobjetivas. “O fotógrafo da “50”, assim se referiam a ele aqueles que não sabiam seu nome”. Assim ficou.
O “cota” do título é uma expressão muito usado em Angola como pronome de tratamento. Algo como o nosso “senhor”. Sr. 50.
Ardoroso defensor do MPLA (“Empélá”, como dizem aqui), partido majoritário e que está no poder desde a fundação do Estado angolano, em 75. O atual presidente é apenas o segundo e já está no poder há 29 anos.
Hoje é metodista.
Abstêmio, a todo momento pergunta-me: “Queres uma Cuca?
Quando viu minhas primeiras fotos para uma matéria do jornal, uma sessão de retratos da diretora de uma empresa de locação de veículos de luxo, disse que era foto publicitária. Conversamos longamente sobre os cada vez mais tênues limites entre a foto jornalística e a publicitária. Convenci-lhe de que me sentia em paz com o leitor, já que tudo o que fica aparente nas minhas fotos é verdade. Apenas agrupo os elementos de composição numa ordem própria. Achou divertido, na sessão de fotos, a “bagunça” que causamos na empresa com a movimentação dos carros.
Recentemente, confidenciou-me que aprendera muito comigo. Devolvi dizendo que eu, sim, é que aprendera muito com ele. Incrédulo, desafiou-me a dizer o que. Perdi um precioso tempo tentando lembrar-me de algum aspecto propriamente fotográfico, técnico, em vão, quando veio-me à alma o entendimento de que ele havia restaurado em mim não só o desejo pela fotografia, como pela vida. Foi o que eu lhe disse.

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